sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Relação de Consumo 1


I – Introdução
As modificações no mercado de consumo ocorrem de forma muita rápida, e, a cada dia, novas práticas comerciais e cláusulas contratuais são inseridas no mercado de consumo.
Atento a esse cenário, e com receio de se criar um diploma legislativo que em pouco tempo poderia ficar obsoleto, "engessado", o legislador fez a opção de conceder um amplo poder à jurisprudência para a fixação do alcance das normas do CDC ao longo do tempo.
Assim, foi adotada, no CDC, e posteriormente no CC/02, a técnica legislativa denominada de "cláusulas gerais", na qual são utilizados conceitos jurídicos cuja completa determinação caberá à atividade criadora do Juiz.
É importante ressaltar que a expressão "cláusulas gerais" tem dois significados distintos no Direito do Consumidor. O primeiro, enquanto técnica legislativa. Já o segundo significado diz respeito ao fenômeno das condições gerais dos contratos, no qual a expressão "cláusulas contratuais gerais" abarca as cláusulas pré-elaboradas pelo fornecedor de maneira unilateral, uniforme e abstrata. A expressão que ora utilizo diz respeito tão-somente ao primeiro significado da expressão.
Essa tendência de utilização de "cláusulas gerais" enquanto técnica legislativa é observada em vários Estados que utilizam o sistema romano-germânico (dentre outros: Alemanha, Itália e Portugal).
Em outras palavras, o legislador, ciente da velocidade na qual ocorrem as mudanças sociais, transfere ao Juiz, limitado pela própria lei e pelos princípios do sistema jurídico no qual ela está inserida, a tarefa de delimitar precisamente o âmbito de aplicação da lei.
Nesse contexto, o STJ, incumbido pela Constituição Federal de harmonizar a jurisprudência infraconstitucional brasileira, ganha uma importância ímpar na efetivação da defesa do consumidor.
E a discussão sobre o papel do STJ na construção da jurisprudência brasileira sobre direito do consumidor cabe, não somente aos ministros que compõem o denominado Tribunal da Cidadania, mas à sociedade, e especificamente aos aplicadores do direito, pois a "jurisprudência é, na verdade, a fonte viva do direito" (Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1995, p. 136).
Devido à impossibilidade de ser esgotado o tema da palestra em curto período de tempo, selecionei alguns tópicos que, acredito, serão de interesse dos presentes.
II – Caracterização da relação de consumo
Como sabido, para a aplicação da normas protetivas do CDC é necessária a caracterização da relação de consumo. Para tanto, nos pólos da relação jurídica devem existir um consumidor (ou ente equiparado) e um fornecedor.
a) Caracterização do fornecedor
Não existem grandes polêmicas a respeito da caracterização do fornecedor.
Registre-se que o STJ tem admitido inclusive a aptidão de associações e sociedades sem fins lucrativos para figurarem como fornecedor (Resp’s n. 436.815 e n. 519.310, de minha relatoria, dentre outros).
Com efeito, quando elas exercem atividades remuneradas no mercado de consumo como uma sociedade empresária (ex: contratos de mútuo, de prestação de serviços médicos), não será a natureza jurídica delas que excluirá a aplicação das normas protetivas do CDC em favor dos consumidores, pois os critérios para a caracterização dos fornecedores previstos no art. 3º do CDC são puramente objetivos.
b) Caracterização do consumidor
Uma grande controvérsia existente hoje é a possibilidade de o empresário (pessoa física ou jurídica) ser caracterizado como consumidor.
A controvérsia surge das diversas interpretações referentes à expressão "destinatário final", que consta do art. 2º do CDC (conceito de consumidor).
De início, a doutrina se dividiu em duas teorias: a finalista (ou subjetiva) e a maximalista (ou objetiva).
A principal diferença entre elas decorre da circunstância de a doutrina finalista não considerar como consumidor a pessoa que utiliza um produto ou serviço na sua atividade profissional, ou seja, para a teoria finalista a pessoa que adquire um bem ou serviço com o intuito de lucro não é considerada consumidora.
A 2ª Seção do STJ, no julgamento do CC 41.056/SP (DJ: 20/9/2004), em acórdão de minha relatoria, considerou como consumidora uma farmácia que celebrou contrato com sociedade empresária que administrava serviços de pagamento por meio de cartão crédito (Visanet).
Na oportunidade, ao adotar a teoria maximalista, fiz questão de ressaltar a vulnerabilidade da farmácia, e o fato de que nem ela nem o contrato tinham porte econômico ou financeiro expressivo.
Já no julgamento do REsp 541.867 (julgado em 10/11/2004), rel. p/ acórdão Min. Barros Monteiro, a 2ª Seção do STJ adotou a teoria finalista e entendeu não haver relação de consumo entre uma sociedade empresária revendedora de tintas e uma administradora de cartão de crédito. Também nessa oportunidade, houve discussão quanto a hipossuficiência da revendedora de tintas.
Como se vê, a questão é polêmica não somente na doutrina como também na jurisprudência.
Mas, independentemente do posicionamento que vier a ser pacificado no STJ, tenho que nunca poderá ser esquecido o princípio do CDC, talvez o maior, de reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo (art. 4º, I). Ou seja, o CDC sempre deverá ser interpretado de forma teleológica, e os seus dispositivos somente serão aplicados para proteger a parte mais fraca da relação jurídica (o vulnerável, hipossuficiente).
Coerente com essa linha de interpretação, está o REsp n. 258.780 (Rel. Min. Barros Monteiro), no qual não foi considerado "como consumidor o empresário que toma vultuosa importância empresta junto a uma instituição financeira para instalar um parque industrial".
Nesse sentido, ainda que não tenha havido discussão expressa sobre vulnerabilidade, poderia também ser incluído o REsp 231.208 (Rel. Min. Ruy Rosado), no qual se decidiu que o "CDC incide sobre contrato de financiamento celebrado entre a CEF e o taxista para aquisição de veículo".


*Fonte:
Fátima Nancy Andrighi
ministra do Superior Tribunal de Justiça

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